sábado, 31 de outubro de 2009

Inaugurado Centro de Actividades Ocupacionais (CAO)

Fotografia: Pedro Carvalho

Foi inaugurado no dia 25 de Outubro de 2009 o novo Centro de Actividades Ocupacionais. Entre as diversas entidades que nos honraram com a sua presença contam-se Mário João Oliveira, Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, D. António Francisco dos Santos, Bispo de Aveiro, Eng.º Celestino de Almeida, Director do Centro de Segurança Social de Aveiro e, naturalmente, o Padre José Augusto Nunes, pároco da freguesia.

A Palhaça esteve em festa. O povo encheu-se de brios e acorreu em grande número, com natural regozijo. Nada do que engrandece a nossa terra nos é indiferente e não é todos os dias que se assiste à inauguração de um equipamento social tão importante para o concelho e para a vida das pessoas portadoras de incapacidade e suas famílias.

O Centro de Actividades Ocupacionais é uma resposta social desenvolvida em equipamento, que se destina a actividades para jovens e adultos de idade igual ou superior a 16 anos. Estamos a falar de pessoas que apresentam incapacidade grave, com dificuldades sérias em exercer, de forma temporária ou em permanência, uma actividade produtiva. Seres humanos que precisam de muito carinho e apoio específico e que por norma não estão abrangidos pelo regime de emprego protegido.

Os principais objectivos a atingir neste tipo de equipamento são: o encaminhamento destes jovens e adultos, sempre que possível, para programas adequados de integração sócio-profissional; o reforço da auto-estima e da autonomia pessoal e social; a interacção com a família e a comunidade, integrando-os em actividades de natureza útil, lúdica e recreativa, para que se mantenham activos e interessados; finalmente, o desenvolvimento das suas capacidades físicas e cognitivas.
Fotografia: Pedro Carvalho

Convém referir que este desenvolvimento de capacidades não pode estar vinculado a exigências de rendimento profissional ou a qualquer tipo de enquadramento normativo de natureza jurídico-laboral. Os produtos que resultam do seu labor produtivo representam um estímulo à valorização pessoal e podem funcionar como factor de integração e visibilidade social, uma vez comercializados em eventos específicos. O produto da venda dos bens produzidos no âmbito do CAO deve ser canalizado para os utentes que os produzem e não para as instituições (n.º 2, art. 10.º do Decreto-Lei 18/89, de 11 de Janeiro). Infelizmente, nem sempre assim acontece.

O CAO tem de assumir-se como um instrumento importante na construção do projecto de vida de cada indivíduo. Isso requer esforços no sentido de se contratar pessoal qualitativa e quantitativamente necessário para se atingir esse objectivo. Há casos em que é importante admitir um Terapeuta Ocupacional, um Terapeuta da Fala, ou um Fisioterapeuta que trabalhem com carácter exclusivo nesta valência. Nem sempre isso é possível, mas o bom deve aspirar sempre ao melhor e este só pode contentar-se com o óptimo. Estamos a falar de uma valência que ao contrário de outras respostas sociais tradicionais requer dinâmicas diferentes de intervenção.

Também os processos destes utentes devem estar organizados de forma a garantir um registo rigoroso em várias vertentes: a psicológica, a social, a clínica, a familiar, ou a educacional. É importante registar a observação sobre o modo como evolui cada jovem ou adulto em concreto. Isto pressupõe o recurso a dossiers individualizados que permitam uma distinção visível dos diferentes conteúdos, de modo a facilitar a sua identificação e consulta.

Enfim, ter um CAO é um privilégio para qualquer freguesia. Ele dá, a quem mais precisa, oportunidades de participação e gera interacções positivas entre pessoas que o frequentam e o meio que as envolve. Esta prática vai para além da perspectiva meramente reabilitativa. Distancia-se do termo «deficiência» e aposta na adopção do termo mais genérico «incapacidade», que engloba os diferentes níveis de limitações funcionais de cada indivíduo em particular.
Fotografia: Pedro Carvalho

O Centro Social Paroquial S. Pedro da Palhaça está a partir de agora dotado de uma infra-estrutura que serve o concelho, consolida o respeito pelos direitos humanos, promove a igualdade de oportunidades e combate a discriminação. O CAO, com capacidade para acolher actualmente 20 utentes, honra a freguesia, dignifica os seus obreiros e privilegia os potenciais utilizadores. E ajuda a combater o estigma social, que o sociólogo Erving Goffman define como sendo a situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena.

Se a Praça de S. Pedro é a “sala de visitas” da freguesia, o Espaço Vida – que, além do CAO, vai integrar a Creche, o Centro de Dia, o Lar de Idosos e o Serviço de Apoio Domiciliário, instalações que vão conviver de perto com a ADREP e a futura Escola do 1.º Ciclo - arrisca-se a ser a “jóia da coroa”, um novo pólo de atracção e desenvolvimento da Palhaça a juntar a outros, como a zona industrial, que cresce a olhos vistos.

Um orgulho para os palhacenses. Um prémio para a sua fé inquebrantável e para a sua dedicação sem limites a iniciativas do género. Uma verdadeira locomotiva em andamento, que no caso do Espaço Vida muito deve à perseverança e ao dinamismo do seu maquinista: o padre José Augusto.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A «Carga de Trabalhos» vai fechar?

Finalmente, a «Carga de Trabalhos», principal e famigerado portal de ofertas de emprego/estágios na área da Comunicação (do Design ao Jornalismo, passando por Relações Públicas, Marketing, Publicidade, Multimedia, etc.), deixa de ser conivente com a falta de ética e com os crimes levados a cabo por algumas - não poucas - empresas que desrespeitavam a lei laboral, rejeitando qualquer publicação de anúncios de empregos ou estágios não remunerados ou de falsos «recibos verdes» ou falsos «estágios curriculares».

O crime, na área da Comunicação (que sucede noutros ramos de trabalho), que remete sobretudo jovens para situações de uma precaridade lastimável e de incógnita, não termina aqui, mas o «Carga de Trabalhos», que estava a perder credibilidade, tomou uma decisão importante, mesmo que notemos que quer passar a ideia de «virgem ofendida», quando andava na cama com anúncios humilhantes (cheguei a ler num «estágio não remunerado, com ajudas de custo e... bolos e café à vossa disposição»).

O trabalho escravo ou em condições indignas não devia ser coisa deste século, como o pintam, em nome de um vago «interesse nacional», determinados senhores demasiado bem instalados na vida para compreenderem certas situações, como o presidente da CIP, o senhor Van Zeller, ou o senhor Belmiro de Azevedo (que querem que o poder económico dirija e determine as opções do poder político). Não me parece que seja assim que a produtividade aumente ou que Portugal consiga ser mais competitivo, como exigem esses senhores.

A ambição de progresso económico é natural, mas se não for sustentada pela responsabilidade social, pela ética empresarial e pelo bem estar dos cidadãos-trabalhadores portugueses, de que serve? A quem serve?

Texto aqui.

sábado, 24 de outubro de 2009

Saramago, a Bíblia e uma opinião de Vasco Pulido Valente

Um lamentável texto (1) de Vasco Pulido Valente (VPV) sobre a polémica instalada a propósito do mais recente livro de José Saramago obriga-me, embora contrafeito, a regressar a este tema já aflorado no Palhaça Cívica. Lamentável porque não dignifica o investigador; antes o coloca, neste caso concreto, ao nível do historiador de pacotilha que de facto não é.

Vejamos: começa VPV por dizer que as opiniões de Saramago sobre a Bíblia “são ideias de trolha ou de tipógrafo semianalfabeto”, numa alusão ofensiva ao passado profissional do escritor, a roçar o elitismo mais doentio, como se todos tivessem que nascer em berço de oiro, como ele. Logo a seguir, outra diatribe: ter oitenta e tal anos, como Saramago, é “coisa que não costuma acompanhar uma cabeça clara e que, ainda por cima, não estudou o que devia estudar”. Pois não: Saramago teve que subir a vida a pulso e nesses tempos árduos em que se forjava o self made man não podia estudar, tinha é que trabalhar. Conheço de sobejo o argumento, mais uma vez a tresandar a elitismo. Frequentei estudos pós-graduados num estabelecimento de ensino onde VPV investiga e lecciona. Como éramos quase todos trabalhadores-estudantes, alguns professores davam aulas com evidente fastio, quase sem nos fitar nos olhos, um frete de todo o tamanho. E porquê? Porque sustentam a peregrina tese de que os estudos de pós-graduação não devem ser para trabalhadores-estudantes, gente sem tempo para investigar e queimar as pestanas na Biblioteca Nacional...

A seguir, lá vem o argumento com a carga ideológica habitual, a invejazinha bem portuguesa, sempre pronta a desvalorizar o mérito alheio: “Saramago ganhou o prémio Nobel, como vários ‘camaradas’ que não valiam nada”. Para o preclaro e iluminado VPV a qualidade literária é coisa que não pode ser imputada a escritores ou poetas comunistas e quejandos. Digamos que as coisas boas e às vezes excelentes que VPV produz - ao contrário de outras lamentáveis, como o texto a que me refiro – aparecem nos intervalos de lucidez do historiador, que é bem mais novo que Saramago. De facto, que classificação merece esta impertinente afirmação: “Não assiste a Saramago a mais remota autoridade para dar a sua opinião sobre a Bíblia ou sobre qualquer outro assunto, excepto sobre os produtos que ele fabrica”.

Saramago não pode. Mas a ele, cronista e historiador ungido pelos eleitos, assiste essa autoridade para arrasar e demolir em farpas violentas – muitas vezes injustas e pouco clarividentes – tudo e todos. Seguindo à letra este raciocínio primário, podemos inferir não estar ao nosso alcance comentar os livros do historiador, por não serem produto nosso, amassado pelas nossas mãos. E assim ficaríamos impossiblitados de lhe dizer, cara a cara, que O Poder e o Povo. A Revolução de 1910, é uma interpretação altamente discutível e metodologicamente impugnável daquele período histórico (2). Ou que narrou os primeiros anos do regime republicano segundo uma óptica parecida com a de Cobb nos seus estudos sobre a Revolução Francesa, escapando-lhe o essencial das reformas indicadas pelos republicanos (3). Na verdade, para VPV a I República foi puro terror, não consegue vislumbrar nela os traços de modernidade que também contém.

Por fim, mas não menos importante, fixemo-nos neste raciocínio: “Depois do que fez no PREC, Saramago está mesmo entre as pessoas que nenhum indivíduo inteligente em princípio ouve”. O historiador refere-se ao período em que Saramago, no ano de 1975, esteve à frente do Diário de Notícias e despediu trabalhadores. Sem pretender escamotear esta realidade, conviria avivar a memória de VPV, lembrando-lhe que em todos os períodos revolucionários se cometem excessos. Referimo-nos a períodos de “conjuntura política fluida” e de “incerteza estrutural” (4) caracterizados por situações de excepção, onde é manifesta a aceleração do regime de funcionamento do campo político. Ao contrário do que acontece nos regimes políticos estabilizados, em que funcionam as mediações tradicionais, assistimos neste tipo de conjunturas à confrontação aberta entre novas gramáticas políticas. 


Seguindo à letra o raciocínio de VPV, também poderíamos dizer: depois do que fez no tempo da Inquisição, a Igreja está mesmo entre as instituições que nenhum indivíduo inteligente em princípio ouve. Claro que recusamos liminarmente este raciocínio grosseiro. A Igreja, como as pessoas, também evolui. E só por má fé se pode não reconhecer-lhe, hoje, o importante papel que desempenha nas áreas da assistência e da solidariedade social, ou na inculcação de valores que reforçam a coesão familiar e social, entre outros.


Enfim: no extenso rol das suas certezas inabaláveis, o que VPV às vezes mostra é a mais completa insensibilidade para conhecer e entender o Outro. Mesmo que não concordemos com ele, o que o Outro pensa não pode ser visto com hostilidade ou ameaça, como uma peste. A solução não passa por erguer muros em vez de pontes. A cultura da hospitalidade deve prevalecer sobre a cultura da indiferença ou da guerrilha permanente. O insuspeito filósofo Emmanuel Lévinas via no encontro com o Outro – enquanto ser único e irrepetível - um “acontecimento” ou até um “acontecimento fundamental”, o patamar mais elevado da convivência humana. O padre Carreira das Neves soube fazer isso, no frente a frente com o autor do Memorial do Convento.

Pena que VPV misture coisas sérias com as banais crises hepáticas que por vezes o atormentam e o levam a esgalhar prosa tão ácida, retorcida e deliberadamente provocatória.

(1) Vasco Pulido Valente, “Uma farsa”, Público, 23.10.09
(2) A. H. Oliveira Marques, Guia de História da 1.ª República Portuguesa, Lisboa, Editorial Estampa, 1981, p. 142.
(3) Manuel Villaverde Cabral, Portugal na Alvorada do Século XX, Lisboa, Editorial Presença, 1988, pp. 154 e 262.
(4) Michel Dobry, Sociologie des Crises Politiques, Paris, Presse de la Fundation Nationale des Sciences Politiques, 1992, pp. 40 e 150.


quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Jovens à procura do primeiro emprego são mais vulneráveis

Os jovens à procura do primeiro emprego e os trabalhadores precários ou com baixos salários são encarados pelos portugueses como os novos grupos vulneráveis à pobreza em Portugal, segundo um estudo hoje divulgado.

Estes são os resultados preliminares de um inquérito sobre "Percepções da pobreza em Portugal" realizado pela Amnistia Internacional Portugal em parceria com a Rede Europeia Anti-pobreza e o Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa.

O estudo foi feito a partir de uma amostra representativa de 1350 pessoas com 18 anos ou mais e de 19 freguesias seleccionadas aleatoriamente em cada região de Portugal.

Oitenta e três por cento dos inquiridos para o estudo sustentam que há hoje novos grupos vulneráveis à pobreza, com destaque para os jovens à procura do primeiro emprego.

Hoje há uma percepção generalizada de que a situação laboral torna os indivíduos vulneráveis à pobreza, enquanto há 20 anos essa vulnerabilidade era identificada em grupos minoritários como os deficientes, as minorias étnicas e os doentes crónicos.

O combate à pobreza passa assim, na opinião dos inquiridos, pela criação de emprego assim como por investimentos políticos em áreas como a saúde, educação e formação profissional.

No que respeita aos sinais de pobreza, os inquiridos para este estudo mencionam com maior frequência dados como a inexistência de água, luz eléctrica ou casa de banho.

"Podemos dizer que a inexistência de condições mínimas de salubridade continua a ser o indicador de pobreza mais consensual, não havendo ainda menção alargada a formas de pobreza mais modernas", lê-se no estudo.

Uma das principais questões colocadas no inquérito diz respeito à percepção da existência de pobreza em Portugal e uma grande parte da amostra (40 por cento dos inqueridos) considera que metade da população vive em situação de pobreza.

No entanto, apenas uma pequena parte da amostra (6 por cento) classifica a pobreza existente como miséria.

Para a Amnistia Internacional Portugal e a Rede Europeia Anti-pobreza, este estudo indica claramente que é fundamental intervir no domínio da opinião pública e sobre as suas percepções.

"Não podemos esquecer que os conceitos de pobreza e de exclusão social são construídos e delimitados pelo mundo dos que se julgam incluídos. É aqui que é preciso, prioritariamente, actuar, não esquecendo, os 'velhos pobres'", defendem.

As duas organizações defendem ainda que é necessário criar uma cultura social que assuma a sua co-responsabilidade, que entenda que a exclusão é uma consequência dos modelos e das práticas escolhidas e que não é inevitável.

Por outro lado, defendem uma mobilização e participação de todos os actores, em particular dos que enfrentam a pobreza, um fenómeno que atinge mais de 79 milhões de pessoas na União Europeia, entre as quais cerca de dois milhões de portugueses.


in Lusa, via DN

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

José Saramago sobre a «Bíblia»

Era impossível que novo romance passasse despercebido devido ao tema escolhido: Caim e a Bíblia. Ao continuar a sua interpretação bíblica, que o levou ao exílio após o veto ao 'Evangelho segundo Jesus Cristo', o Nobel volta a abanar a estrutura de um dos edifícios que mais o indispõe, o das religiões. As reacções explodiram quando quase ninguém leu 'Caim'

A Igreja Católica portuguesa reagiu em bloco ao novo romance de José Saramago, ainda o livro estava a ser posto à venda nas livrarias. Os primeiros comentários de uma polémica que está longe do seu auge, e das réplicas que decerto provocará, tiveram origem nas declarações que o Nobel efectuou domingo à noite em Penafiel, onde considerou que "sem a Bíblia seríamos outras pessoas. Provavelmente melhores". Depois, endureceu e afirmou: "Não percebo como é que a Bíblia se tornou um guia espiritual. Está cheia de horrores, incestos, traições, carnificinas." Referiu ainda que costuma chamar ao livro sagrado dos cristãos "um manual de maus costumes".

Para José Saramago, Caim "é uma espécie de insurreição em forma de livro", que pretende levar os leitores à reflexão: "Nós somos manipulados todos os dias. Temos de lutar contra isso. Que a leitura deste livro vos ajude a ver o outro lado." Um conselho do autor do já polémico Evangelho segundo Jesus Cristo, que, garante, não é contra Deus que escreve: "Até porque ele não existe. É contra as religiões." Porque não servem para aproximar as pessoas nem nunca serviram, explica.

As reacções a Caim serão bastantes e diversas e uma das primeiras foi observada no presidente da Câmara de Penafiel, antigo seminarista, que se manteve impávido, evitou a polémica e só disse: "Respeito as opiniões de cada um. Não me atreveria a criticar as suas convicções. Quanto às minhas, guardo-as para mim", disse Alberto Santos.

O escritor não foi apanhado de surpresa pelas reacções imediatas ao seu novo livro. Questionado pelo DN sobre a rapidez da resposta da Igreja, considerou: "O que me surpreende é a frivolidade dos senhores da Igreja. Não leram o livro e vieram logo, com insólita rapidez, derramar-se em opiniões e desqualificações, tanto da obra como do seu autor. Como falta de seriedade intelectual, não se poderia esperar pior. Compreendo que tenham de ganhar o seu pão, mas não é necessário rebaixarem--se a este ponto."

Em resposta à acusação de D. Manuel Clemente sobre a sua "ingenuidade confrangedora" sobre a Bíblia respondeu: "Abençoada ingenuidade que me permitiu ler o que lá está e não qualquer operação de prestidigitação, dessas em que a exegese é pródiga, forçando as palavras a dizerem apenas o que interessa à Igreja. Leio e falo sobre o que leio. Para mistificações não contem comigo."

Também não evitou comentar as afirmações do porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, que sugeriu "ser uma operação de publicidade" dizer mal da Bíblia: "O padre Manuel Morujão já disse que a leitura de Caim não é uma das suas prioridades. Agradeça-se-lhe a franqueza. Estranha coisa, porém, é um porta-voz que não sabe de que está a falar."

Inquirido ainda sobre se este regresso a um tema religioso denotava uma fixação, José Saramago foi claro: "É um motivo de reflexão, não uma fixação." Depois de ter escrito sobre a Bíblia, só faltava saber se pretende futuramente escrever sobre o Alcorão, ao que respondeu: "Não está nas minhas intenções, mas nunca se sabe."

Uma coisa é certa, pela quantidade de autógrafos dados em Penafiel, Caim não vai cair no esquecimento dos fiéis de Saramago.


in DN

domingo, 11 de outubro de 2009

Eleições autárquicas na Palhaça: a emergência do feminino

É nas eleições autárquicas que encontramos uma maior proximidade entre eleitores e eleitos. Nas pequenas freguesias até conhecemos os candidatos e, em muitos casos, mantemos com eles relações de amizade, proximidade e vizinhança. Se essa proximidade já nos agrada, é ainda maior o regozijo quando assistimos a uma participação crescente das mulheres na vida política da nossa terra. Cresce a esperança de novos rostos, de vermos um pouco mais humanizado o poder e um pouco mais diligente o cuidado do outro.

A participação das mulheres na política e a acção transformadora que podem exercer é uma aquisição muito recente em Portugal. Começa praticamente com a revolução de 25 de Abril de 1974. Antes disso, muito caminho foi trilhado, num tempo em que, confinadas ao lar, lhes estava exclusivamente reservado o papel de esposas e mães. Tiveram que lutar e protestar para fazer ouvir a sua voz e reclamar direitos cívicos e políticos, o mesmo é dizer, dignidade e emancipação, instrução e participação activa na sociedade.

Há precisamente cem anos, Ana de Castro Osório apresentou ao Congresso Republicano de 1909 uma proposta para que fosse consagrado no respectivo programa a questão do voto feminino. Instaurada a República no ano seguinte, o Partido Republicano esqueceu rapidamente as “amplas liberdades” que prometera no tempo da Monarquia. Apesar de nas Constituintes muitos deputados terem visto no direito de voto das mulheres uma proposta justa, apenas três tiveram a coragem de publicamente manter as suas afirmações (1). Já vem de longe quem nos empurra, quando falamos em compromissos rasgados ou promessas por cumprir. O que choca, a esta distância, é a insensibilidade dos políticos da época para resolver o problema.

Em matéria de voto feminino, muito somos devedores – homens e mulheres – à médica Carolina Beatriz Ângelo, a primeira mulher a exercer o direito de voto em 1911. Como era viúva, teve artes de aproveitar uma lacuna da lei, que conferia direito de voto aos “chefes de família” (figura jurídica entretanto abolida da Constituição da República) mas sem especificar o sexo dos mesmos. Ora Beatriz Ângelo era “chefe de família” e assim deu um empurrão importante na luta pelo direito ao voto feminino. A incomodidade foi tanta que a lei acabou por ser mudada logo a seguir, para que casos idênticos não viessem a repetir-se.

As mulheres da Palhaça que integraram listas partidárias, e por maioria de razão as que as encabeçaram, como aconteceu com as do PS e do CDS, estão de parabéns. Atreveram-se a dar a cara e a desafiar preconceitos, numa terra em que são ainda visíveis algumas representações tradicionais sobre o papel que devem ter na sociedade. A crescente inserção no mercado de trabalho deu às mulheres outra independência e legitimidade para intervir. Ainda bem que assim é. É tempo de se valorizar o que são capazes de fazer em vez de esperarmos que sejam perfeitas – como se fosse possível aos seres humanos ser perfeitos... – uma estratégia cínica que só serve para as diminuir. É um acto de inteligência reconhecermos a sensibilidade e o voluntarismo que denotam para as causas sociais, ou a riqueza de experiências e realidades vividas de que são portadoras.

Mais do que ficar à espera dum sistema de cotas e leis da paridade, as mulheres - e os homens que com a razão da sua luta se identificam - devem continuar a pugnar pelos seus direitos. Convém não embarcar em lugares-comuns generalizados, na lengalenga dos que dizem que as mulheres são melhores em tudo, que são elas quem manda em casa, que exibem um maior quociente emocional, que com o tempo lá chegarão (ao poder), que por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher (quase sempre anulada, para que o homem brilhe...) e outras larachas do costume. Nada de mais falacioso neste discurso masculino que mais não faz que perpetuar, ainda que de um modo subliminar, diferentes formas de dominação. Como se houvesse um determinismo de género no exercício do poder. As mulheres não têm que estar atrás ou à frente dos homens. Devem caminhar a seu lado. Não tanto por uma questão de igualdade, mas como forma de afirmar a sua identidade e diferença e abolir desigualdades. Sim, porque como costumava dizer Maria de Lourdes Pintasilgo a igualdade perfeita não existe apenas na lei e nas formas, mas na vida toda.

As eleições são um jogo onde uns ganham e outros perdem. Mas participar já é ganhar. As mulheres da Palhaça que de forma corajosa se envolveram na disputa eleitoral autárquica saem vitoriosas desta contenda, qualquer que tenha sido o resultado. Há que lhes dar os parabéns. E se por causa da sua condição de mulheres algum arrufo de discórdia ou alguma atoarda integrista lhes foi arremessada durante a campanha, isso significa que a crescente exposição pública a que voluntariamente se submetem está a incomodar os habituais velhos do Restelo e que a melhor forma de apressar o tempo da igualdade de oportunidades é intervir socialmente.

As mulheres na política melhoram a qualidade da democracia e conferem-lhe uma nova dimensão: uma representatividade nos órgãos eleitos mais conforme à composição da sociedade. Se as diferentes comunidades são compostas por homens e mulheres, que razões ou argumentos impedem que quem as representa politicamente sejam homens e mulheres?
Responda quem souber...

(1) João Esteves, As Origens do Sufragismo Português, Lisboa, Editorial Bizâncio, 1998, p. 73.

sábado, 10 de outubro de 2009

Uma reflexão sobre «Baraka» (filme de Ron Fricke, 1992)



«Baraka» («espécie de poder espiritual hereditário», para certos sectores islâmicos do continente africano) é um ensaio multimedia arrojado, que coloca em perspectiva a diversidade e as contradições da natureza do homem, da natureza em si, e da natureza das relações humanas.

Expõe diferentes dinâmicas e ritmos do Universo, através de uma estética e sonoplastia poderosas (a música de uns Dead Can Dance não será um incidente, a ausência de um guião literário é uma virtude). Confronta-nos, ainda, com um dilema da estética: por um lado, a beleza da exaltação dos fenómenos naturais e dos ritos e rituais humanos, por outro, a beleza do apocalipse e da mecanização. Neste sentido, «Baraka» poderá ser um objecto artístico perigoso, se o receptor da mensagem não reflectir, não discernir, dentro da sequência de beleza compulsiva, uma qualquer moralidade, por vezes secundada pela estética. O desafio está, para o espectador mais exigente, nessa procura. O deslumbramento não chega para disfrutar, porque cega.

Há imagens marcantes, neste «documentário» amplo sobre a vida, o Homem, a sociedade, as religiões, as crenças e a economia, que petrificam: os loops do homem a trabalhar as máquinas, como se fosse exactamente uma máquina, como se o processo alucinante de produção industrial se confundisse com o processo de maquinização do homem; os pintaínhos a serem tratados como um qualquer produto de consumo desenfreado e descartável, espécie de peluches comestíveis; o hipnotismo, o mistério e a sincronia audiovisual de alguns rituais de tribos em paisagens remotas e quase virgens; ou a imagem da penúria e da procura de alimento, por vacas junto a mulheres e crianças, no meio de uma lixeira astronómica; a queda de uma árvore a devastar, a desequilibrar parte considerável do ecossistema circundante.

Enfim, «Baraka» é um buraco fundo, por descobrir e cobrir.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O TGV, o “perigo espanhol” e uma polémica de 1853.

Propositadamente, este texto só vem a lume depois das eleições legislativas. Para que não se diga que Palhaça Cívica andou a interferir na campanha eleitoral. Não queremos um blog de partido, mas também não queremos que se tire partido do blog.

Assistimos, nos dias que correm, sempre que se fala da linha de alta velocidade, ao esgrimir de argumentos que remetem para o marulhar de outros tempos. Para o longínquo ano de 1853, como adiante se verá. Quando as solas da imaginação se rompem, o remédio é recuperar alguns registos antigos de inspiração alheia.

Vem isto a propósito do que Manuela Ferreira Leite afirmou no recente debate televisivo que travou com José Sócrates a propósito do TGV: que Portugal não é uma província espanhola. Assim mesmo. O que está aqui em causa não é um respeitável e diferenciado ponto de vista sobre os méritos ou deméritos da linha férrea de alta velocidade. O assunto é polémico e tem causado naturais clivagens entre as diversas forças políticas. A uns interessará mais o investimento público, a criação de empregos e a oportunidade de negócios; outros argumentarão que há países que continuam a dispensar o TGV e nem por isso deixam de ser evoluídos e modernos.
Nada de mal quando se discutem concepções de sociedade e modelos de desenvolvimento. São diferentes maneiras de tentar melhorar o destino de Portugal. Coisa bem diferente é o aceno explícito ao populismo, o resvalar para os tortuosos caminhos da demagogia, o reacender de velhos mitos nacionalistas (de Espanha, nem bom vento nem bom casamento). Foi por aí que enveredou Manuela Ferreira Leite ao agitar o papão do “perigo espanhol”.

É assim irresistível não falar do que se passou em 1853. Também nessa altura, ao discutir-se a criação dos caminhos de ferro, se atearam as labaredas da polémica. Como refere Maria Filomena Mónica, o que estava em causa, em 1853, “era já a ligação à Europa” quando os comboios eram vistos como “o símbolo por excelência do Progresso”(1). Tudo era diferente, mas tudo parece igual. Em 1853 a Europa mais evoluída já se afastara bastante de Portugal, que nem sequer tinha uma rede viária ou ferroviária de ligação a Espanha. A crença na possibilidade de desenvolver o País e acabar com o isolamento passava pela construção de estradas, caminhos de ferro e portos. A polémica entre Alexandre Herculano e Lopes de Mendonça ficou célebre, por revelar duas atitudes opostas: dum lado, a visão mais conservadora e representativa de um mundo em vias de extinção, protagonizada por Herculano; do outro, a visão modernizadora de Lopes de Mendonça, para quem a abertura à Europa passava pela construção de uma rede viária ou ferroviária. Como pano de fundo pontificava a recorrente obsessão com a identidade e a independência nacional.
Repare-se nos argumentos de Alexandre Herculano: “Os caminhos de ferro tendem a destruir as divisões entre os povos, a uniformizar as ideias e os costumes e a igualar as diversas civilizações. As antigas autonomias vão desaparecer: vão destruir-se todas as formas de separação conhecidas. Sob este aspecto, os diferentes povos vão constituir, num futuro talvez mais próximo do que supomos, uma sociedade única” (2).

Como se vê, para Herculano o comboio era o coveiro das pequenas nações. O caminho de ferro, na ausência de uma enérgica descentralização administrativa, conduziria à importação das ideias e produtos estrangeiros e fazia perigar a independência nacional, empurrando-nos para uma mais que possível “fusão” com a Espanha. Já para Lopes de Mendonça a construção do caminho de ferro e a ligação a Espanha aproximava-nos da Europa e ajudava a derramar sobre o País o progresso material que por cá se mantinha ausente.

Tal como hoje acontece com o TGV, outro ponto importante da discussão dizia respeito ao financiamento das obras públicas. Teria a sociedade portuguesa dinheiro para construir o caminho de ferro sem o contributo do Estado? Herculano assumia a posição do liberal clássico, para quem a sociedade deve fazer o mais que puder, deixando ao Estado a segurança das populações. Esta polémica – tal como a que gira hoje em torno do TGV – revela duas atitudes opostas face à modernização: a da defesa de um estado mínimo e da liberdade privada, protagonizada por Herculano, para quem a liberdade e a moral precedem os melhoramentos materiais; e a de Lopes de Mendonça que entendia o patriotismo como devoção ao estado nacional e identificava a descentralização municipalista (tese cara a Herculano) “com a prepotência dos caciques de campanário”.

Um outro curioso ponto de contacto entre esta polémica de 1853 e a actualidade tem a ver com a velha rivalidade entre Porto e Lisboa. Hoje discute-se se é mais vantajosa a ligação a Espanha a partir de uma ou outra cidade. Em 1853 o Porto “temia que a capital e o seu porto se agigantassem ainda mais graças ao incremento do comércio com o país vizinho, deixando o Norte abandonado a um inexorável definhamento” (3).

Digam lá se os argumentos esgrimidos há mais de 150 anos estão ou não estão na ordem do dia. A atitude subjacente a estes textos de Herculano e Lopes de Mendonça não podia ser mais actual. Vale a pena lê-los e familiarizarmo-nos com eles. Está lá tudo. É só trocar caminho de ferro por TGV, ou por Internet, ou por globalização. Mas o que separava irremediavelmente estes dois homens é muito mais que o caminho de ferro. São duas concepções antagónicas de Estado e da liberdade que reflectem a tensão, nunca inteiramente resolvida ou superada, entre democracia e liberalismo.

Também o que separa hoje os que são pró e contra o TGV é muito mais que a linha de alta velocidade em si mesma: é sobretudo a maior ou menor confiança no papel do Estado para conduzir a sociedade e os destinos do País; o maior ou menor receio de correr riscos, sendo certo que o conservadorismo se cola mais aos que, não desdenhando o progresso, o desejam sem os habituais incómodos da mudança. Um dos elementos da retórica conservadora é a perversidade, que assenta no postulado segundo o qual as acções de mudança provocam efeitos não esperados, ou o contrário do que pretendiam (os chamados efeitos perversos) que contribuem para a não realização dos objectivos da acção. Outro elemento é o risco, que sublinha que os custos da mudança são de tal monta que podem comprometer as conquistas já alcançadas. (4). Como disse um dia a jornalista Helena Matos, o “não” à obra, seja ela qual for, é o não a um mundo que não sabendo como se mudar se prefere manter assim.
Por mim, arrisco uma tese bem mais peregrina sobre o TGV. Discordo da ligação Porto-Lisboa mas não rejeito as ligações a Espanha, quer a norte quer a sul. Não vejo nisso qualquer cedência aos espanhóis, nomeadamente às suas pretensões hegemónicas na península. Valorizo tudo o que combate o isolamento e o “orgulhosamente sós”, com o que isso implicou noutros tempos de vida miserável generalizada a grande parte da população, além de um evidente atraso civilizacional. O dilema parece ser este: ou continuarmos um País pobre, resguardado das ameaças à sua nacionalidade, ou avançarmos para um progresso material que obriga à formação de espaços económicos e políticos tendencialmente uniformizadores e onde as nacionalidades se diluem.

Mas a razão mais ponderosa desta minha opção é outra: será que Portugal ficará mais rico sem o TGV? Seríamos mais ricos sem as auto-estradas que temos? Teríamos escapado da crise e da cauda da Europa sem o Centro Cultural de Belém, sem a Expo 98, sem o Euro 2004?

É de crer que não. Pobres por pobres, agarremos as oportunidades. Portugal lembra-me sempre o triângulo das Bermudas, onde desaparecem coisas de forma insólita, como barcos e aviões. Ali há dedo de extraterrestres, dizem os mais avisados. Já em Portugal é o dinheiro que desaparece, torna-se volátil, esfuma-se, dissolve-se no ar, escapa-se não se sabe bem para onde. Se não for para o TGV vai parar a outro buraco qualquer, há-de desaparecer sem deixar rasto ou marca visível. Um verdadeiro poço sem fundo.

Os extraterrestres do nosso atraso sempre adiado são os suspeitos do costume. Pena é que não encontremos forma de os substituir por outros mais capazes e confiáveis. E daqui não saímos, enquanto continuarmos amarrados a preconceitos atávicos e a despertar fantasmas do século XIX no Portugal europeísta do século XXI.

(1) Maria Filomena Mónica (org. e prefácio), A Europa e Nós: Uma Polémica de 1853. A. Herculano contra A. P. Lopes de Mendonça, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais/Quetzal Editores, 1996, pp. 7-8.
(2) Alexandre Herculano, Opúsculos, Tomo I, Questões Públicas. Política, Lisboa, Livraria Bertrand, 1983, p. 359.
(3) Maria de Fátima Bonifácio, “Diferente, igual”, Expresso (Cartaz), n.º 1233, 15.06.1996, p. 27.
(4) Albert O. Hirschman, O Pensamento Conservador. Perversidade, Futilidade e Risco, Difel, 1997.